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Dissertação mostra que modelo do sistema escolar cerceia educação


Félix é graduado em Ciências Matemática e da Natureza

[Foto: Valérya Próspero]

A Educação é constantemente apontada como solução para os problemas da sociedade, tanto em nível comportamental, cognitivo, quanto social. O que tem sido praticado no Brasil é uma padronização do sistema de ensino, mesmo que a Constituição Federal preveja que a cultura local seja valorizada, a exemplo dos artigos 210 e 215.

A avaliação é do mestre e indígena Bororo, Félix Rondon Adugo Enawu. Esse modelo educacional foi tema de dissertação defendida por ele na última terça [14], intituladaSaberes e fazeres autóctones do povo Bororo: contribuição para a educação escolar intercultural indígena, pelo mestrado em Educação, da UFMT.

Félix é coordenador da educação indígena de Mato Grosso e conhece a realidade das 43 etnias existentes no Estado. O conteúdo do trabalho, apesar de voltado aos Bororos, serve para reflexão do sistema de ensino de todos os indígenas.

O mestre explica que a escola desconsidera os valores autóctones dos Bororos, ou seja, os saberes e fazeres pertencentes àquele povo, originários daquele território. Enquanto a cultura Bororo prioriza a vivência de forma humanizada, a educação tradicional apenas treinaria as pessoas, não ensinando a amar um ao outro, a ter cuidado. “Isso precisa ser resgatado”, defende.

Os anciãos, que seriam a referência para o ensinamento das tradições, têm sido deixados de lado pelos mais jovens, que não estão mais focados nos saberes e fazeres locais. “Se isso fosse trabalhado nas escolas, as pessoas teriam muito mais sentimentos de pertencer ao povo e querer ajudar um ao outro. Mas não acontece isso. Hoje, nas aldeias, é um querendo ser mais que o outro, pois é isso que a educação escolarizada ensina, é assim que ela educa”, critica.

Mesmo as aulas sendo ofertadas por indígenas formados, a cultura educacional dos não­índios, chamada de intercultural, acaba se sobrepondo à local. “Mesmo os professores sendo indígenas, receberam essa forma de ensinar. É uma educação da cultura de fora. E continua sendo uma forma de colonizar”, acredita.

A orientadora da pesquisa, professora Beleni Grando, vai além e aponta que o texto é uma reflexão crítica sobre a aprendizagem, que no povo Bororo acontece no fazer, é nele que está a ciência e tecnologia deles. “Na integração você deixa de ser quem você é para pertencer ao meu grupo”, salienta ao se referir ao modelo educacional difundido nas aldeias.

Novo modelo

Félix deixa claro que o intuito não é banir as escolas das aldeias. Pelo contrário, os povos querem aprender. Ele aponta apenas que a forma de ministrar é que deve mudar, assim como a estrutura e organização da instituição.

Ele exemplifica expondo como as aldeias Bororo são organizadas. Como mostra a imagem a seguir, as ocas são dispostas em círculo. Este é dividido em quatro clãs. Todo clã tem um chefe. Eles, juntos, organizam toda a situação social da aldeia. As pontas verticais seriam as interferências espirituais.

[Imagem: Arquivo/Pesquisador]

A escola, por sua vez, ensina a ter um chefe com o poder e só uma pessoa toma decisão, gere e tem autoridade para falar e comandar. No povo Bororo não é assim. Na aldeia, todos os clãs tomam e participam das decisões.

Dessa forma, segundo Félix, a primeira coisa a ser mudada é a forma de gerir a escola, para que se adeque a administração ao estilo das convicções daquele povo.

Governo

Conforme Félix, várias leis federais garantem essa valorização das tradições. Elas, contudo, precisam ser regulamentadas em Mato Grosso. Para tanto, necessita passar pela Assembleia Legislativa, mas o pesquisador afirma que não há deputados que apoiem as mudanças. No final do ano passado foi aprovado o Plano Estadual de Educação, que valerá pelos próximos dez anos, e nele todas essas questões deveriam estar previstas. O documento, neste mês de julho, sofreu alterações sem passar por discussões com a população e consulta ao Sindicato representante dos professores, o Sintep, como ocorreu com a primeira versão.

“O Plano que eles fazem é geral, mas Mato Grosso tem 43 povos. Como que um plano geral vai dar conta de 43 povos que têm línguas diferentes, hábitos diferentes, crenças diferentes. Porque a crença precisa estar junto na educação”, ressalta Félix.

Momento histórico

Pela primeira vez, o mestrado em Educação forma um pesquisador da etnia Bororo. A orientadora de Félix, professora Beleni Grando, enquanto o apresentava, fez questão de dizer que ele não entrou no mestrado por meio de cota, mas sim pelo processo seletivo normal.

Pela primeira vez também anciãos desse povo participaram da defesa, e a presença só não foi pelo fato de o restante ter ficado em um funeral, cerimônia importante para eles. Os Bororos habitavam a região de Cuiabá antes dos não-­índios chegarem. O nome da capital e a cultural local têm relação direta com essa etnia, também conhecida como Povo Boe.

[Foto: Valérya Próspero]

Fizeram parte da banca examinadora os professores Luiz Augusto Passos [UFMT], Paulo Isaac[UFMT] e Vilma Aparecida de Pinho [UFPA]. Passos, em sua fala, afirma que os não-­índios precisam aprender com os Bororos, pois estão perdidos no meio social. “Nossa civilização é de morte e sem perspectiva. Sociedade que não deu certo e não dará. E quem carrega o peso são os indígenas, quilombolas, ciganos e a população empobrecida”.

Vilma concorda com a conclusão do trabalho realizado por Félix em afirmar que a educação indígena precisa ser repensada. “A educação escolar indígena não atende as necessidades daquele povo”. Paulo, por sua vez, aponta que o trabalho se atentou para questões essenciais, mas que, devido ao seu estado ainda de encantamento pelo trabalho realizado, não pode expressar análise criteriosa do conteúdo do texto dissertativo.

Ritual

A defesa da dissertação começou com um ritual típico Bororo, chamado Awararefe. Segundo Félix, o rito é voltado àqueles que ficam longe por muito tempo. O choro da anciã Beatriz Kiga, mãe alma da sua aldeia, e a fala do irmão Kleber Meritororeu retratam o sofrimento com o frio, cansaço, poeira nos olhos e tudo que se andou para estar ali. “Félix trava guerra consigo e é mais difícil que a guerra com os livros e escrita. Se libertar da educação que sempre recebeu é difícil”, diz Kleber, ao falar do choque cultural inevitável, principalmente devido à intervenção Católica, por meio dos Salesianos, na vida indígena.

No final da defesa teve outro ritual, dessa vez para Félix mostrar que é Bororo. “Estava de camisa e gravata, mas sou um Bororo que está recebendo título de mestre”, reforça. Acompanhe parte do momento no vídeo abaixo.

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